Um resíduo que costuma ir para o lixo pode ser a chave para resolver um dos maiores problemas da agricultura: os nematoides, parasitas microscópicos que atacam as raízes das plantas, derrubam a produtividade e causam prejuízos bilionários em todo o mundo.
O avanço vem das mãos de quem conhece bem a força do agronegócio: a pesquisadora Cecília Baldoino Ferreira, natural de São Gotardo (MG), cidade que é referência na produção nacional de alho. Ela lidera o estudo realizado na Universidade Federal de Lavras (UFLA), que desenvolveu um método capaz de extrair enzimas da casca de alho para o controle bioquímico desses parasitas.
“Não se trata de uma bioarma, e sim de controle bioquímico”, destaca a pesquisadora. O termo é importante: diferentemente de produtos que atuam como pesticidas biológicos, o método utiliza compostos naturais presentes na casca do alho — mais especificamente as proteases, enzimas capazes de degradar a camada externa que protege os nematoides.
Trajetória acadêmica com raízes em São Gotardo e experiência internacional
Cecília Baldoino Ferreira é formada em Química pela Universidade Federal de Viçosa – Campus Rio Paranaíba (UFV-CRP) e atualmente conclui seu doutorado em Agroquímica na Universidade Federal de Lavras (UFLA), com término previsto para o fim deste ano.
Sua formação também inclui uma experiência internacional de alto nível: parte do doutorado foi realizada na renomada Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, uma das instituições mais prestigiadas da Europa.
Sua trajetória une de forma singular a vivência no agronegócio, desde sua origem em São Gotardo, com a formação científica em algumas das mais reconhecidas instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior.
São Gotardo presente na ciência
Além de ser a cidade natal da pesquisadora, São Gotardo também teve participação direta no fornecimento da matéria-prima para a pesquisa. As cascas de alho utilizadas foram cedidas pela empresa BBC Agrícola, sediada no município.
O Brasil produz cerca de 300 mil toneladas de alho por ano, sendo São Gotardo um dos principais polos produtores do país. E é desse cenário agrícola que surge uma solução com potencial global.
Pesquisa que virou patente
O trabalho, que foi patenteado, não nasceu da noite para o dia. A pesquisadora destaca que foram mais de dois anos de pesquisas intensas, que exigiram muitos testes, análises e dedicação de toda a equipe.
“É muito legal que as pessoas saibam disso. É um trabalho muito difícil, que demandou muito estudo, dedicação e o esforço de todo mundo que participou”, afirma Cecília Baldoino Ferreira.
Ela também revelou que novos estudos já estão em andamento, com foco em aprimorar a formulação, garantir a estabilidade do produto e viabilizar sua produção em escala industrial.
Como funciona o controle bioquímico?
A casca de alho, que normalmente seria descartada, é rica em proteases, enzimas que têm a capacidade de quebrar proteínas. Nos nematoides, essas enzimas degradam a cutícula, uma espécie de armadura que envolve e protege o parasita.
Sem essa proteção, o nematoide perde sua integridade, se desidrata e morre. O processo não utiliza nenhum agente tóxico, sendo uma alternativa natural, limpa e sustentável, alinhada aos princípios da bioeconomia e do controle bioquímico.
Etapas do estudo
O trabalho foi rigorosamente estruturado e executado em três etapas principais:
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Testes in vitro: diretamente com os nematoides Panagrellus sp. e Meloidogyne incognita no laboratório, utilizando microtubos e observação microscópica.
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Testes em solo simulado: realizados em placas de Petri com substrato, reproduzindo condições semelhantes às do solo agrícola.
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Testes em estufa: conduzidos em plantas de feijão (Phaseolus vulgaris) para avaliar não só o controle dos nematoides, mas também os impactos no crescimento e desenvolvimento das plantas.

Créditos: Ferreira et al. (2025).
Resultados comprovados
Os números obtidos são expressivos e impressionantes:
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100% de eliminação dos nematoides Meloidogyne incognita no teste in vitro.
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Redução de 72,38% dos nematoides Panagrellus sp. no mesmo teste.
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Em solo simulado, redução de até 100% dos nematoides Meloidogyne incognita e 45,45% de Panagrellus sp.
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No teste em estufa, as plantas apresentaram uma redução de 93,52% na quantidade de ovos de nematoides nas raízes, além de melhora expressiva no desenvolvimento e na produção.
As plantas tratadas com o extrato enzimático cresceram mais, ficaram mais saudáveis e produziram, em média, 4 vagens a mais que as plantas não tratadas. A altura média das plantas também foi maior: 91,8 cm, contra 80,9 cm do grupo controle.
Muito além do controle de pragas
O benefício não se limita ao controle dos nematoides. As plantas livres dos parasitas:
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Crescem mais;
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Desenvolvem sistemas radiculares (raízes) mais fortes;
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Absorvem melhor água e nutrientes;
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Tornam-se mais resistentes a estresses como seca, pragas e doenças;
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E, principalmente, aumentam a produtividade.
Um futuro promissor e sustentável
Os próximos passos da pesquisa já estão em curso. Segundo a autora, os estudos agora focam em aprimorar a formulação, garantir estabilidade ao produto e viabilizar a produção em larga escala. Tudo isso para que, no futuro, o extrato da casca de alho possa ser disponibilizado como uma solução natural, eficiente e acessível para os agricultores.
O avanço representa não apenas um salto para a agricultura sustentável, mas também um exemplo claro de como ciência, agroindústria e meio ambiente podem caminhar juntos.
De São Gotardo para o mundo
O trabalho desenvolvido pela pesquisadora Cecília Baldoino Ferreira, filha de São Gotardo, formada em Química pela Universidade Federal de Viçosa – Campus Rio Paranaíba (UFV-CRP) e doutoranda em Agroquímica na Universidade Federal de Lavras (UFLA) — com parte do doutorado realizado na prestigiada Universidade Católica de Leuven, na Bélgica —, é motivo de orgulho não só para a comunidade acadêmica, mas também para o município, que tem sua força no agronegócio reconhecida agora também como fonte de inovação científica.
O que antes era considerado lixo — a casca de alho — agora tem potencial para se transformar em uma solução sustentável, econômica e eficaz no combate às pragas agrícolas, contribuindo com a produtividade, a saúde das lavouras e o equilíbrio ambiental.
Referência científica:
Ferreira, C. B., Barros, P. H. F. C., de Sousa, M. R., et al. (2025). From waste to resource: Garlic peel-derived proteases (Allium sativum) for nematode control. Environmental Progress & Sustainable Energy. https://doi.org/10.1002/ep.14639